Médicos de homens, e sem almas


Li e recomendo o artigo de Claudio de Moura Castro da semana passada na revista VEJA, intitulado: O muro de arrimo do “doutorzeco”. Muita lucidez em abordar uma temática emergente, e que pode ser transportada para todas as áreas do conhecimento.

Há muito, venho refletindo sobre esse tema, mas faltava coragem para abordá-lo porque parecia ser entendido como dor de cotovelo. Na minha vida acadêmica fui aposentado como professor titular sem ter percorrido os caminhos que hoje são obrigatórios para quem se dedicar à função de professor. Consegui juntar muitos títulos de pura atividade profissional e também na área de pesquisa, sem ser doutor. Aliás, nem mesmo mestre, que é uma categoria inicial, eu consegui ser. Hoje se estivesse começando a minha vida acadêmica certamente eu teria feito esse caminho. O problema seria a ordem de percorrê-lo. Primeiro, trataria de ser médico, verdadeiramente médico, para depois evoluir também nos conhecimentos que oferecem um mestrado, um doutorado e mesmo um pós doutorado.

O problema é que vem ocorrendo um fato muito curioso e perigoso no campo da medicina (que pode ser aplicado às outras áreas, como foi mostrado no artigo da VEJA na área de engenharia). O aluno se forma (com as precariedades do ensino em muitas Escolas Médicas) sem a terminalidade do Curso e não sabendo ainda exercer a arte de curar ou de diminuir o sofrimento, optam por seguir direto para uma carreira de mestre e depois de doutor. Levam nesse percurso uns seis anos, e depois retornam para seus locais de origem com uma bela bagagem de conteúdos científicos, mas sem saber nem conversar com um paciente (de quem fogem).

É esse mesmo profissional que encontrará facilidade para ingressar na vida acadêmica, e que suplantará sem a menor dificuldade o especialista, que tenha os anos que forem possíveis e necessários de prática médica, num concurso público. Saber atender, saber ouvir, saber diagnosticar e saber tratar é trocado por saber as novidades dos últimos estudos publicados sobre doenças (muitas vezes raras), e para as quais foram super formados para dar aulas sem nunca as ter diagnosticado ou tratado.

A deformação está dentro das faculdades, que inverteram (para atender exigências do MEC) a pirâmide que tinha na base os especialistas, em seguida um percentual de mestre e na ponta alguns doutores. Hoje o que vemos é a base constituída por doutores, em seguida os mestres, e alguns especialistas (aqueles que sobraram depois da lógica implantada, até se aposentarem). Com certeza, para a prática do ensino médico eles desaparecerão. A chance de um especialista se inscrever para pleitear uma vaga de professor é remota ou mesmo nula. E foram os especialistas que, ensinando a ouvir e a entender os padecimentos dos pacientes, acrescentaram “alma” à medicina.

Por isso afirmo que estamos diante de uma nova realidade (deformação) na formação médica. Médicos preparados cientificamente para a pesquisa, mas sem nenhuma prática de atendimento ao ser que sofre. Médicos capazes de entender teoricamente as mínimas particularidades das patologias por eles estudadas, mas nunca defrontadas e nem mesmo enfrentadas. Médicos próximos dos avanços tecnológicos, mas distantes do sofrimento humano. Médicos que exercerão a medicina do futuro baseada nas conhecidas evidências, no entanto desprovida de alma.

Marco Mota
É médico cardiologista
E-mail: mota-gomes@uol.com.br