A calcificação da artéria coronária (CAC), uma medida de aterosclerose subclínica, pode ser quantificada de forma não invasiva por uma tomografia computadorizada do coração sem contraste. Trata-se de um exame rápido e que utiliza baixa dose de radiação. O resultado é expresso em unidades Agatston e em percentil; um percentil de 90 significa que 90% das pessoas do mesmo sexo, idade, etnia e sem doença cardiovascular ou diabetes mellitus pregresso têm um escore de cálcio coronário menor.
Na prática clínica, a avaliação da CAC insere-se em dois contextos interconectados: o da estratificação de risco de doença cardiovascular aterosclerótica (DCVAt) e como ferramenta que auxilia a tomada de decisão clínica, principalmente na identificação de indivíduos com potencial benefício pelas estatinas.
Quanto ao papel da avaliação de CAC na estratificação de risco de DCVAt, é notório que os escores de risco tradicionais, que utilizam os fatores de risco convencionais, têm limitações relevantes na capacidade de predizer eventos. A maior parte dos eventos aterotrombóticos ocorre em pacientes de risco baixo a intermediário, e não de risco alto, segundo os escores tradicionais.1 A avaliação da CAC acrescenta informação preditiva além da proporcionada pelos fatores de risco tradicionais. Dentre os vários métodos propostos para refinar a estratificação de risco de DCVAt (proteína C-reativa, espessamento médio-intimal ou aterosclerose carotídea, por exemplo), a avaliação da CAC é considerada o melhor, podendo reclassificar os indivíduos para uma categoria de risco diferente, sobretudo naqueles inicialmente considerados de risco intermediário.2-5
Mesmo escores baixos de cálcio coronário associam-se a maior risco em relação à ausência de calcificação.6 Escore de cálcio coronário igual a zero indica um risco muito baixo de eventos ateroscleróticos por até 15 anos nos indivíduos que são classificados de risco baixo a intermediário pelos escores de risco tradicionais.7 Desta forma, a ausência de CAC torna questionável a prescrição de estatinas, visto que o benefício será irrisório.4,5 Exceções são os pacientes com LDL-c muito elevado (≥190 mg/dL, suspeita de hipercolesterolemia familiar), diabetes mellitus, forte histórico familiar de DCVAt e os tabagistas, situações que se associam a risco considerável mesmo com escore de cálcio coronário zero.8 Diante da crescente evidência de que o exame da CAC pode auxiliar a prática clínica, as últimas diretrizes de colesterol têm feito recomendações acerca de seu papel na estratificação de risco de DCVAt e no direcionamento do tratamento hipolipemiante (Tabela).8-10
A avaliação da CAC também pode ajudar na tomada de decisão sobre uso ou não de ácido acetil salicílico (AAS) em prevenção primária, assunto que gera bastante controvérsia. Os ensaios clínicos randomizados mais recentes questionam a utilidade do AAS em prevenção primária (pouco benefício com aumento do risco de sangramento).11-13 No entanto, uma recente análise de um estudo observacional sugere um benefício maior que o risco de sangramento naqueles com escore de CAC maior que 100, independente do risco estimado por um escore de risco tradicional.14
Concluindo, a avaliação da CAC por tomografia computadorizada do coração sem contraste é um excelente método para definir de maneira mais precisa o risco de DCVAt em prevenção primária. Na prática clínica, tem principal indicação quando há dúvida quanto ao tratamento mais apropriado a ser instituído, principalmente no que diz respeito à introdução ou não de estatina. Na maior parte das vezes, estes casos são os representados por indivíduos de risco intermediário pela análise de fatores de risco tradicionais, e eventualmente aqueles de risco mais baixo com histórico familiar de doença arterial coronária prematura.
Tabela. Recomendações sobre a avaliação da CAC em prevenção primária de DCVAt, de acordo com as últimas diretrizes de dislipidemias.
Diretriz |
Principais recomendações relacionadas à CAC |
Atualização da Diretriz Brasileira de Dislipidemias (2017)9 |
Prevenção primária, CAC >100 🡪 alto risco de DCVAt |
Diretriz de Colesterol da AHA/ACC (2018)8 |
É razoável avaliar CAC em pacientes de risco de DCVAt intermediário ou limítrofe nos quais a decisão sobre iniciar ou não estatina é incerta (IIa). CAC zero: razoável não introduzir estatina e repetir o exame em 5 a 10 anos (IIa). Exceções: diabetes mellitus, tabagistas ou com forte histórico familiar de DCVAt (risco em 10 anos substancial mesmo com escore de cálcio zero). CAC 1-99: razoável iniciar estatina se idade ≥ 55 anos (IIa). CAC ≥100 ou percentil ≥75: razoável iniciar estatina (IIa). |
Diretriz de Dislipidemia da ESC/EAS (2019)10 |
Considerar avaliação da CAC como modificador do risco de DCVAt em indivíduos assintomáticos de risco baixo a intermediário (IIa). CAC >100 🡪 pelo menos alto risco de DCVAt. Avaliação da CAC pode ser útil para a tomada de decisão sobre introdução ou não de medicamento em indivíduos de risco intermediário quando a meta de LDL-c não é atingida com modificações de estilo de vida. |
ACC: American College of Cardiology; AHA: American Heart Association; CAC: calcificação da artéria coronária; DCVAt: doença cardiovascular aterosclerótica; EAS: European Atherosclerosis Society; ESC: European Society of Cardiology
Resumo
A calcificação da artéria coronária (CAC) pode ser quantificada de forma não invasiva por uma tomografia computadorizada do coração sem contraste. A avaliação da CAC é considerada atualmente o melhor método para refinar a estratificação do risco de doença cardiovascular aterosclerótica, podendo reclassificar os indivíduos para uma categoria de risco diferente. O exame pode ajudar na tomada de decisões terapêuticas, sobretudo no que diz respeito à introdução ou não de estatina, principalmente nos indivíduos de risco intermediário e nos de risco baixo/limítrofe com histórico familiar de doença arterial coronária prematura. Em particular, escore de cálcio coronário igual a zero associa-se a risco muito baixo de eventos ateroscleróticos por até 15 anos nos indivíduos que são classificados de risco baixo a intermediário pelos escores de risco tradicionais. Nestes casos, a ausência de CAC pode levar à decisão de postergar a introdução de estatina.
Palavras-chave ou categorias: Escore de cálcio coronário, Risco cardiovascular, Estatina
Referências
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