Coluna
Doença e Saúde, Guerra e Paz
“na paz, preparar-se para a guerra; na guerra, preparar-se para a paz”
- Sun Tzu
Recentemente, um paciente comentou: “o meu médico é caxias”. A metonímia
trouxe à mente as correlações entre guerra e doença, a começar pelo jargão
médico, onde não faltam métaforas bélicas: combater a infecção, lutar contra
o câncer, dose de ataque, mecanismo de defesa, gatilho imunitário, campanha
contra AIDS, manobra de reanimação, tática cirúrgica e arsenal terapêutico.
Cardiologistas usam bulha em canhão, “pistol shot”, agonista e antagonista,
além de válvula em paraquedas. Por outro lado, estrategistas militares têm
falado ultimamente em bombardeio com precisão cirúrgica. Quem sabe,
poder-se-ia ouvir em quartéis “o meu general é zerbini”.
O epônimo da coréia reumática Thomas Sydenham (1624-1689 é um ponto de
referência do bom soldado e médico. Sydenham foi um jovem combatente no
exército inglês de Oliver Cromweel (1599-1658), que passou à história como
Hipócrates inglês, Pai da medicina inglesa e fundador da epidemiologia. Ele
se inspirou nos campos de batalha para entender a beira do leito como o
verdadeiro tratado de Medicina, cada paciente sendo um novo capítulo.
As limitações e imposições da moléstia alistam doentes num contingente
hostilizado por um inimigo (Figura 1), alvo de uma emboscada do destino.
Saúde e paz são situações de liberdade valorizadas quando se perde; a
opinião pública localiza as prioridades mais freqüentemente no campo
econômico.
A eficiência da diplomacia contribui para que não haja inimigo para ser
combatido; o empenho para prevenir doenças é o melhor em prol da saúde.
A Medicina preventiva atua sobre fatores de risco e vale-se de marcadores
para antecipações de diagnóstico. O ideal de vacina persiste restrito,
apesar do progresso científico e tecnológico.
A organização da sociedade em Forças armadas e em Sistema de Saúde não dá
garantia de paz ou de saúde. O pacifismo não constitui uma resistência forte
suficiente contra o potencial de violência; vida saudável não se acompanha
de um potencial de resistência contra etiopatogenias. Conspirações fomentam
a perda de paz ao mesmo tempo que anormalidades subclínicas transformam-se
numa real expressão de doença. Como afirmou Simone Weil (1909-1943), assim
que pensou em algo, pergunte em que sentido o contrário é verdadeiro.
Não estar em guerra não significa exatamente viver em paz, não estar doente,
não depende de órgãos exatamente normais. A prevenção primária contra guerra
ou doença é aquela que enfraquece os ataques e a secundária é a que
fortalece as defesas.
Perante a ofensa à pátria, o general assume o comando tático. Diante da
saúde injuriada, o médico exerce o conhecimento segundo um código de ética.
Enquanto esta é bitonal (é vedado, é permitido), os métodos científicos são
as sete notas musicais que permitem infinitas composições. Contudo, a
criatividade da beira do leito precisa ser equilibrada com a finitude dos
recursos da Medicina.
Os muitos caminhos da experiência profissional e das expressões de
enfermidades se cruzam com o artigo 29 do Código de Ética Médica- é vedado
ao médico praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser
caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência.
Freios morais e atenção a preferenciais evitam colisões nos cruzamentos;
porém, é útil assegurar-se da presença de um semáforo ético, cujo
funcionamento pode ser entendido segundo a analogia com a arte da guerra
apresentada no quadro 1.
QUADRO 1- Analogia entre arte da guerra e arte médica, com base
nos escritos de Sun Tzu. |
A perspectiva de atuação médica com zelo e prudência é amparada por uma
série de comportamentos:
a) manter-se em treinamento, mentalizando-se como eternos R1, R2, R3,
tenente, coronel ou general, não importa a patente, na ordem unida dos
exercícios táticos, em manobras de educação continuada (evitação da
imperícia); a fidelidade à beira do leito nos mantém arquitetos de castelos
de pretensões e arqueólogos de realidades perdidas.
Uma informação do paciente é retida mais facilmente do que mil palavras no
livro, dissociadas de um caso. A memória do médico está em consonância com
Aristóteles (384ac-322ac): as coisas que é preciso ter aprendido para
fazê-las, é fazendo que aprendemos. Desaprendemos quando deixamos de fazer,
a cada momento, o que sabemos fazer é o que não esquecemos pelo reforço da
prática.
b) focar prioridades de acordo com a captação de informações (raciocínio
clínico).
Historicamente, o uso de espiões ajusta o foco por desviar dos descaminhos
da desinformação; a autenticidade da espionagem está cada vez menos
dependente de único agente e mais apoiada por sofisticados e dispendiosos
recursos tecnológicos. Os espiões propedêuticos são três: a anamnese, o
exame clínico e o exame complementar, que descobrem modos de ação, locais e
dados privilegiados da doença.
O inimigo imaginário do hipocondríaco e do habitué da automedicação é um
impostor que conduz a uma guerra fria, enquanto que o inimigo oculto do
negador contumaz, resguardado da delação, assenta minas em meio a pistas
falsas.
c) aplicar método e disciplina no planejamento e ser perspicaz com a
oportunidade para a execução (tirocínio clínico).
Adiamentos indevidos de decisões fazem com que as armas pareçam mais
pesadas, arrefecem o entusiasmo e fazem aflorar um sentimento de angústia;
os recursos vão ficando cada vez mais desproporcionais às forças. Quem
conhece os efeitos desastrosos da indecisão compreende a suprema importância
da prontidão com que a ordem de comando deve soar quando o combate é
imperioso.
Empenho e eficiência estão interligados à capacidade de tomar resoluções;
vale muito o discernimento para avançar (não ser negligente) ou permanecer
nas trincheiras e até mesmo recuar (não ser imprudente). Quando se persegue
a decisão correta, o temor do descrédito não deve impedir retroceder, por
exemplo, como médico da primeira opinião ao receber uma segunda opinião mais
qualificada.
O médico viabiliza a boa decisão quando seleciona as beneficências no
arsenal da Medicina e promove os ajustes de não-maleficência. Quando ele se
decide por uma diretriz, que já depurou inutilidades, o máximo proveito do
juízos vem da experiência pessoal e do feed-back com as peculiaridades
daquele paciente. A moderação do gourmet, que falta ao glutão, dá a
qualidade da nutrição do vínculo com o paciente.
A reprodutibilidade que subentende beneficência para a maioria exige
flexibilidade perante a minoria discordante. As adaptações equalizam um
fator essencial de eficiência: cometer o menor número de erros.
O filtro do custo-risco-benefício recomenda que após mirar no alvo certo não
se atira só porque se possui uma arma. O eco esofágico, por exemplo, é um
torpedo para a endocardite em prótese valvular e um desperdício de munição
na rotina de acompanhamento do portador de valvopatia.
Na terapêutica, preferências representam a távola redonda, a hierarquia deve
existir sem posições extremadas. Vir na frente é questão de ponto de
referência como uma roda gigante, pular de um medicamento para outro é como
carrossel, o destino é o mesmo.
Evitar atirar para todos os lados foi bem descrito por Miguel Couto
(1864-1934): nesta receita, entrou toda a botica, só faltando o boticário...
como ficou tonta a natureza para atender a tantas ordens ao mesmo tempo.
d) promover coalisão (autonomia). Salvo em iminente perigo à vida, o livre
arbítrio promove compartilhamento e responsabilidade do paciente nas
decisões. A superposição de objetivos é fator de humanização na relação
médico-paciente. A tolerância é sempre bem-vinda porque coloca verdades da
circunstância acima de certezas conceituais.
O teste do comprometimento do paciente dá-se comumente quando ocorrem
oscilações das vantagens. Por mais que a equipe multiprofissional faça a sua
parte, muitos insucessos são decorrentes da falta de iniciativa do paciente
em procurar cuidados quando a situação clínica permitiria melhor
prognóstico; atrasos significam edema agudo de pulmão não atendido quando
ainda era uma dispnéia aos esforços.
e) integrar-se a estado-maior competente. Aliados produzem a energia em
espiral de um tronco que rola morro abaixo. No vínculo
equipe-paciente-instituição, a complementaridade permite que cada um faça
exatamente o que está preparado para cumprir, e assim, faz boa equipe quem
seleciona os que dão conta de cada recado.
Há os que têm a missão de enxergar onde está a vantagem (clínico que indica)
e há os que se dispõem a aplicá-la (intensivista ou cirurgião). É como um
quebra-cabeças, onde o mérito do sucesso da montagem está nos recortes
diferentes de cada peça.
Paz e saúde têm conexão com estar livre. O médico está na frente de batalha
desta integração porque ele é, por natureza, um ativista da liberdade.
OBS.: A fonte de inspiração para este artigo foi o livro A Arte da Guerra,
um documento produzido pelo chinês Sun Tzu, contemporâneo de Hipócrates.
Suas apreciações sobre aspectos táticos e humanos, até hoje, continuam
verdades aplicáveis ás várias formas da guerra do dia-a-dia de inúmeras
atividades profissionais.
Fonte: Dr. Max Grinberg