Coluna


Um Certeiro Machado Guerreiro

Max Grinberg
Ano 1963, Aula de Parasitologia

Ele era um tremendo cara-de-pau, pesadelo diurno de muitos mestres.

Anti-convencional assumido, sempre na contra-mão dos “bons hábitos”, o caradura possuía cadeira cativa no fundo da sala para tirar um conveniente cochilo que o recuperasse de uns prematuros plantões noturnos que ajudavam no sustento longe de casa.

O apelido Trotsky veio no trote de calouro, pois, a cada um que recebia- e como ficara marcado, foram dezenas até a “libertação” no dia 13 de maio-, ele reagia com um inflamado discurso de esquerda contra a arbitrariedade dos veteranos que só queriam ridicularizar os calouros. Coincidentemente- ninguém ficou sabendo se o apelidador conhecia esta data, foi o professor de Propedêutica que descobriu- o nosso colega nascera no dia, mês e ano de morte de Lev Davidovich Bronstein (Leon Trotsky -1897-1940).

Naquele dia, já ao final do segundo ano da Faculdade, todos loucos para que o terceiro ano chegasse- depois de umas merecidas férias até depois do Carnaval, obviamente- ele aprontou mais uma, talvez a mais inspirada da sua carreira bem-sucedida de estudante catarse da turma. Não mais do que 10 minutos de aula, Trotsky interpelou o professor assim que este virara as costas para escrever na lousa o que acabara de dizer: REAÇÃO DE MACHADO GUERREIRO. “-Professor?”
Quando todos se viraram e lhe voltaram os olhares, viram o Trotsky em pé, olhar fixo no seu alvo, fácies indignada- marca registrada nestas ocasiões- todo vestido de branco denunciando o plantão que fez ou que faria -ou ambos.

O dedo indicador balançava em direção ao teto, como que armando o bote, uma postura que já prenunciava quem seria o orador que escolheríamos na formatura. Só aguardava o professor se virar para a turma para acertar a mira e disparar.
E antes mesmo que o professor ainda mais vermelho do que o habitual, hipertenso que era, pudesse fixar o olhar em quem estava perturbando, Trotsky fuzilou com o seu sotaque mineiro: “ – Professor, isto é um absurdo, eu me recuso a despertar instintos beligerantes, este trem aí é contra minha educação e contra o espírito de Hipócrates, uai. Professor, o senhor bem sabe que a cor do médico é branca, como é a da pomba da paz”. Respirou fundo e prosseguiu elevando a voz e apontando firmemente para o professor petrificado: “- Eu sou um pacifista!”

Ninguém entendeu o Trotsky pacifista, mas ele tinha crédito, muito crédito. A classe já ansiava pelo que estava pra acontecer. Aliás, qualquer coisa na seqüência daquele momento seria melhor do que ficar prestando atenção a nomes de ameba, lombriga e sarna em latim.

E ante o olhar interrogativo do professor, o nosso colega, o irreverente Trotsky, arrematou: “ – Eu nunca, mas nunca mesmo, professor, vou pedir pro meu paciente trazer um machado guerreiro, nem que ele seja um índio! Já imaginou o poder devastador, sanguinário, de uma reação de machado guerreiro?”

O nosso artista se sentou rápido, observando de soslaio os vários lados em busca dos “méritos”. Qualquer semelhança com a Escolinha do Prof. Raimundo...

Alguns colegas não pescaram o duplo sentido de pronto e um zunzunzum tomou conta da sala pelas explicações que uns davam para outros.

Aquele professor já sofrera na pele outras do Trotsky, literalmente, porque contrariedades costumavam lhe dar urticárias gigantes.

Mas, quem sabe, o parasitologista autor do livro adotado- e odiado- pelos alunos nem estivesse agüentando mais ficar se repetindo anos a fio numa sala de aula pegando fogo no verão de 40º e aparelho de ar refrigerado quebrado desde não se sabia mais quando. Lâminas, microscópios e estudantes cansam sem interatividade, era o diagnóstico mais provável. E ali estava uma oportunidade, embora fora de série – e do sério-, para que ele mudasse a postura de distanciamento e praticasse um relacionamento mestre-discípulo mais humano. Curiosamente, Trotsky, que adorava frases feitas entre elas provérbios e adágios populares, poderia estar representando um mal (comportado) que vem para o bem (do professor).
 
A vítima da vez de um Trotsky mordaz entendeu que a aula já tinha ido pro espaço mesmo e decidiu entrar no clima-certamente mais ameno. Foi para o embate, encolhendo a barriga o que dava- foram mais 5 quilos na balança só nos últimos dois meses-, espremendo-se pelo apertado anfiteatro. Era um novo personagem no mesmo avental que há muito deixara de ser branco, na passagem tornando mais evidentes as hastes dos óculos remendadas com esparadrapo, uma triste expressão da magra remuneração de quem só se dedicava a uma cadeira básica.

O professor chegou epicentro do terremoto verbal, fingindo-se mais furioso do que estava realmente. Expressou-se de imediato: “- Você sempre colocando suas manguinhos de fora, senhor Trotsky”. As duas últimas palavras foram ditas com bastante acento, descarregando alguns meses de raiva contida.

A classe que esperava em silêncio a maior bronca desanuviou, explodindo numa gargalhada em uníssono de mais de 150 alunos. Na verdade, 149, pois Trotsky mostrava um sorriso meio que amarelo, pela surpresa com a concorrência na jocosidade, sentiu-se em posição inferior. Foram quase 3 minutos, uma providencial válvula de escape, tão inesperada quanto refrescante, para a habitual chatice da aula sobre Parasitologia.

O professor não parou por aí, tinha aberto a caixa de ferramentas impensável que pudesse existir. Esperou com paciência baixar os decibéis na sala e prosseguiu “à queima roupa”: -“ É o fim da picada eu ter de carregar esta cruz”. E completou olho no olho: “-Você é uma das maiores chagas da história da nossa faculdade, só não o reprovo pra não ter de o aturar de novo no próximo ano”. Houve um espontâneo – e inédito- bater palmas para o professor. O placar lhe era favorável, 2x1, virara o jogo.

A última palavra, contudo, foi do aluno, sempre rápido na língua e que mal ouvira esta última parte com a mente ocupada em construir o que iria falar: “- O que é que um careca como o senhor, professor, entende de barbeiro?”. Empate no último minuto.

Foi a melhor aula de Parasitologia daquela turma- ou da centenária Faculdade- , a única em que os alunos saíram falando bem do professor, até se ouviu que, pensando bem, Parasitologia não era tão chato assim...
Coincidência ou não, ninguém ficou para exame naquele ano, fato nunca até então acontecido com aquele professor.

MEIO SÉCULO ANTES, INSTITUTO MANGUINHOS, ANO DE 1913

Nasceram no mesmo ano de 1885. Astrogildo Machado, em agosto, na cidade paulista de São José dos Campos e Cezar Guerreiro, em setembro, no Belém do Pará. Eles vieram a se conhecer no Rio de Janeiro e ambos foram contratados no Instituto Manguinhos, no mesmo ano de 1911.

O diretor deste tradicional Centro de Pesquisa era Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917), quem enviara o mineiro de cidade de Oliveira, Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas (1879-1934), para combater a malária, em 1907, endemia que prejudicava a construção da Estrada de Ferro Central do Brasil no seu estado natal.

No vilarejo de Lassance, Carlos revelou ótimo senso clínico fora de ambulatório e enfermaria, mais precisamente, nas casas de pau a pique dos habitantes. Com objetividade e alta capacidade de trabalho, ele descobriu, praticamente sozinho, a Tripanosomíase Americana em seus aspectos clínicos, epidemiológicos, parasitológicos e anátomo-patológicos. Acertou na mosca, ou melhor, no mosquito, com escassos recursos.

Carlos percebeu o papel do triatomídio–vetor que cuidava tanto de si, chupando sangue, quanto do então denominado Schizotripano, infestando uma nova pessoa-hospedeiro. Era a carona que promovia mais parasitemia humana em prol da perpetuação da espécie e que se tornava etiopatogenia de mega corações, megaesôfagos e megacólons.

Em 1909, Carlos Chagas, então com 37 anos de idade, tirou o passaporte para a celebridade. Veio na forma da publicação de Nova Tripanozomía Humana, em Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um artigo bilíngüe, em verdade um pequeno tratado sobre a doença com 60 páginas em duas colunas: a da esquerda escrita em português e a da direita em alemão (Fig.1), uma sacada genial de comunicação científica para a fama imediata. À época, não se preparava um paper, o atual anglicismo era um germânico manuskript.

E neste passaporte do reconhecimento internacional, em 1921, foi aposto um visto de entrada numa comunidade selecionadíssima- quer dizer, quase foi.

Neste ano, Carlos Chagas, aos 42 anos de idade, foi pré-escolhido para receber o Prêmio Nobel de Medicina (o mesmo ano em que Albert Einstein foi laureado em Física). Carlos não ganhou, mas também não perdeu para outro- vã consolação-, pois o valor monetário não foi distribuído para ninguém, tendo sido depositado num fundo especial do Prêmio Nobel.

A contrariedade teria sido obra de incríveis forças contrárias de outros países invejosos? Infelizmente, foram ilustres cientistas compatriotas de Chagas que desaconselharam a Academia Sueca, quando esta solicitou aos órgãos brasileiros informações pessoais e profissionais sobre o indicado à láurea. No Brasil, à época, a doença de Chagas tinha sido colocada sob suspeita por acadêmicos que não conseguiam enxergar as evidências, sabe lá por quais razões. Por isso, a pesquisa e o ensino sobre a doença de Carlos Chagas estavam naquele início da década de 20 muito reduzidos nas nossas universidades. Para se ter uma idéia do prestígio internacional renegado na terra natal, o holandês Willen Einthoven (1860-1927) só foi indicado para o Prêmio Nobel em Medicina em 1924.

Uma irreparável mácula na história da Academia Nacional de Medicina. Nestes 80 anos subseqüentes, a Medicina brasileira não teve nova chance.

Assim que Chagas voltou ao Rio de Janeiro, as pesquisas sobre a endemia continuaram no Instituto Manguinhos. Oswaldo Cruz chamou Astrogildo (cunhado de Carlos Chagas) e Cezar e deu-lhes a tarefa de analisar aspectos da nova doença nos laboratórios daquela instituição.

Quatro anos após a publicação do artigo original de Carlos Chagas surgiu: Da reação de Bordet e Gengou na moléstia de Carlos Chagas como elemento diagnóstico, na revista Brasil Medico em 1913, sob autoria de Guerreiro e Machado (Fig.2). Tratava-se do emprego de uma reação de fixação de complemento descrita na Europa em 1900- o belga Jules Bordet (1870-1961) foi mais feliz do que Chagas e ganhou o Prêmio Nobel de Medicina em 1919-, portanto a originalidade estava na utilidade para uma nova doença.

Início de uma fértil linha de pesquisa por dois jovens médicos, então com 28 anos? Estréia para o que hoje poderia ser chamado de um promissor Curriculum Lattes? Negativo! Astrogildo e Cezar não voltaram ao tema nos mais 30 anos de vida. Astrogildo faleceu em 1945 e distinguiu-se por contribuições veterinárias e Cezar lhe sobreviveu por quatro anos.

ANO 2005, PLANETA TERRA

Quem folhear a última edição do livro Diseases of the Heart, editado por Eugene Braunwald, encontrará à página 1710, Machado Guerreiro test, uma rara menção ao Brasil no corpo do texto do livro. Este exame laboratorial é citado no capítulo Chagas disease, a denominação na língua inglesa que não é a versão exata da original brasileira. Na verdade, aconteceu o contrário. A nossa designação até a década de 50 foi Doença de Carlos Chagas (Viana G- Contribuição para o estudo da anatomia patológica da “moléstia de Carlos Chagas”, Mem Inst Oswaldo Cruz 3:276-294, 1911. Pondé A- A cardiopatia chagásica na doença de Carlos Chagas, Arq Bras Cardiol 1:27-70, 1948). Simplificamos para Doença de Chagas por influência norte-americana, como resultado da “tradução” de Chagas Disease. Yes, nós temos Chagas!
Astrogildo e Cezar são cientificamente xifópagos como outros tantos na Cardiologia (Bezold-Jarich, Stokes-Adams, Frank-Starling, Blalock-Taussig e Cheyne-Stokes). A dupla tornou-se inseparável- diríamos uma literal fixação por um complemento laboratorial- às custas de um método que não era criação deles e de uma doença que não lhes representou continuidade de pesquisa.

Astrogildo e Cezar atuando como dois satélites de Chagas conseguiram ter também luz própria- e tão somente com uma nota preliminar (Fig.2). Globalizaram-se como epônimos!

Obra prima num único golpear de um certeiro Machado Guerreiro!

PS- Este texto é uma homenagem ao velho amigo, o estudante Trotsky, hoje um médico conceituado e um professor disciplinador Sempre provocou eco em que tudo que fez, tornou-se, inclusive, ecocardiografista e ecologista. Divide o seu tempo entre imagens profissionais de folhetos e vegetação e mensagens humanitárias sobre o valor do verde no meio ambiente. Antes e depois de ser o terceiro dedo anular a herdar o mesmo anel de esmeralda na sua família mostrou-se um machado na derrubada de preconceitos e um guerreiro da profissão.

Fonte: Dr. Max Grinberg